Dr. Mukwege breaks the silence in Porto Alegre by FRONTEIRAS DO PENSAMENTO

Dr. Mukwege breaks the silence in Porto Alegre by FRONTEIRAS DO PENSAMENTO
Denis Mukwege and Marcos Rolim (clik on the picture above - part 1)

UM QUIXOTE NO CORAÇÃO DA ÁFRICA - Caderno Cultura - Zero Hora em 26/06/2010

Por
Milton Paulo de Oliveira

Um Quixote no Coração da África


– Tu queres operar crianças no Congo?


Antes que eu pudesse perguntar “Onde?”, o professor Pedro Martins, meu chefe no Hospital da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), disparou:


– Não precisas responder agora, mas acho que essas coisas têm tudo a ver contigo.


Começou assim, numa tarde de maio de 2008, uma história que se prolongaria até o coração da África e, para mim, está longe de terminar. Ela me permitiria conhecer um dos seres humanos mais notáveis de que tenho notícia, o médico congolês Denis Mukwege, conferencista da noite da próxima segunda-feira na terceira parte do ciclo Fronteiras do Pensamento.


No momento em que recebi o convite para ir ao Congo, eu fazia preceptoria dos residentes em cirurgia plástica no ambulatório do hospital. Atendemos em média cerca de cem pessoas por turno, que são encaminhadas pelo Sistema Único de Saúde. Só voltei a me lembrar da conversa à noite, quando jantava com a família.


– Fui convidado para operar na África – comentei.


– Como assim? – respondeu Deisy, minha mulher.


Relatei a conversa no hospital. Antes que pudesse prosseguir, meu filho, Felipe, 10 anos na época, interrompeu:


– Operar quem, pai?


– Crianças.


Só queria dizer-lhes que não poderia aceitar o convite por impossibilidade de me afastar do trabalho por 30 dias. Deveria haver dezenas de outros motivos, mas não conseguia lembrar de nenhum naquele momento. E então minha filha, Fernanda, oito anos, desferiu o golpe final:


– Pai, tu não gosta de fazer isso?


– É claro que gosto.


– Então por que tu não vai?


No outro dia, procurei o professor Pedro Martins e aceitei o convite.


– Eu já sabia que tu aceitarias – disse-me, com seu estilo que não desperdiça palavras.


Eu tinha menos de um mês para preparar a viagem. A organização humanitária internacional Smile Train, que promovia a missão, havia colocado à disposição de nosso serviço de cirurgia plástica uma vaga de cirurgião para operar, voluntariamente, crianças com deformidades faciais – especificamente fissuras labiopalatinas, conhecidas como lábio leporino – na República Democrática do Congo. A Smile Train (Trem do Sorriso, em português) foi criada nos Estados Unidos em 1999 e já restituiu o sorriso a mais de 400 mil crianças em 77 países, numa atividade financiada por doações.


Como cirurgião, eu me considerava apto para aquele trabalho. Por outro lado, o Congo era para mim um país praticamente desconhecido. Informações sobre onde iria operar se tornaram obsessão. A partir desse momento, recebi informações do escritório europeu do Smile Train, em Roma. Dias depois, fui informado de que o cirurgião plástico italiano Flavio Abenavolli, responsável pelo braço italiano da organização e que pouco antes estivera operando crianças numa base americana em Bagdá, Iraque, havia contraído uma doença e não poderia me acompanhar ao Congo. Agora sim, pensei. Seria estreante e chefe de uma missão que dispunha de poucos dados das condições técnicas que enfrentaríamos.


Foi o próprio Abenavolli que me passou as primeiras coordenadas. Iria operar numa cidade chamada Bukavu, a ser visitada pela primeira vez pela Smile Train. Isso me colocava, como estreante, em pé de igualdade com a organização no que toca ao Congo, mas por certo não me tranquilizava. Minha equipe incluiria um enfermeiro congolês que trabalhava em Roma e faria parte da missão – outras viagens desse tipo foram precedidas por um tipo de batedor que averigua as condições locais quando o cenário ainda era desconhecido. A ausência de Abenavolli permitiu incorporar ao grupo outro cirurgião brasileiro, meu grande amigo Pablo Pase, que fizera sua formação de cirurgião plástico na PUCRS e acabara de concluir pós-graduação em cirurgia maxilofacial em São Paulo. Sempre gostou da cirurgia reparadora, assim como nunca fugia de qualquer responsabilidade a ele imputada.


Inquieto, percebi que quanto mais recebia informações, mais aumentavam minhas dúvidas. Surgiriam mais dificuldades: a representação do Congo em Brasília não tinha embaixador, e a liberação de vistos tropeçava no pouco domínio do português pelos funcionários, que se comunicavam em francês acompanhado de muita burocracia. Fiz contato com o embaixador brasileiro em Kinshasa, capital do Congo. Depois do espanto em saber que iríamos para o leste do Congo, ao sul do Lago Kivu, o embaixador Flávio Bonzanini se prontificou em nos ajudar a obter os vistos, que chegaram às nossas mãos dois dias antes do embarque para Roma.


Depois de pedir que mantivéssemos muita cautela na viagem, Bonzanini explicou que o Congo era um país rico em recursos minerais, mas com uma população extremamente pobre. Na fronteira leste, onde realizaríamos nossa missão, havia guerra civil, corrupção, violência sexual e atrocidades contra mulheres de todas as idades, as quais não encontravam paralelo em nenhum momento ou lugar da história. O conflito dera origem a um nefasto exército de meninos soldados e meninas escravas sexuais que eram obrigadas a seguir seus algozes em batalhas e massacres. Após uma espécie de armistício em 2004, a guerra foi considerada encerrada no Congo, mas isso apenas aumentou o choque entre facções armadas, a violência e a desordem social. As supostas causas da guerra – se é que algum dia existiram – dissiparam-se, restando apenas ações de extrema violência. O próprio embaixador brasileiro ficou sitiado em 2007 na embaixada do Brasil em Kinshasa, durante a invasão da cidade por rebeldes.


Em Roma, nos reunimos à equipe – sete pessoas, todas italianas, com exceção do enfermeiro congolês. O grupo incluía uma anestesista, uma coordenadora e enfermeiros. O material cirúrgico, que embalamos no escritório da Smile Train, era de excelente qualidade. Para meu alívio, iríamos operar no Hospital Universitário de Bukavu. Naquele momento, não resisti e perguntei:


– Como chegaremos a Bukavu?


Paola, coordenadora do grupo, disparou em inglês que iríamos de avião até Kigali, em Ruanda, com escala em Adis Adeba, Etiópia, e depois seguiríamos por terra em direção à fronteira com o Congo, porque o espaço aéreo da região não era muito seguro. Uma vez no Congo, seríamos alojados num mosteiro em Bukavu. Pensei em perguntar mais algo, mas, no fim, percebi que ela havia respondido completamente à minha indagação.


Ruanda é um país minúsculo a leste do gigante Congo, que supera em tamanho toda a Europa Ocidental. Um Toyota, um motorista e um médico congolês nos aguardavam no aeroporto de Kigali para cruzar aquele país em direção ao Congo. Numa manhã ensolarada, seguimos na caminhonete lotada por uma estrada perfeitamente asfaltada. Nosso médico anfitrião, Tchomba, me disse que no hospital em que trabalhava, em Bukavu, eram feitas muitas cirurgias e ele mesmo já havia drenado um hematoma cerebral.


Com o passar do tempo, a estrada se estreitou, o asfalto escasseou, os buracos apareceram e logo se transformaram em crateras. A poeira aumentou. Começamos a ser parados por grupos armados com fuzis AK-47, roupas camufladas e nenhuma divisa.


– Fiquem aqui e esperem – disse Tchomba, na primeira barreira.


Aquelas pessoas pareciam contrariadas. Falavam muito pouco, em contraste com o motorista, que em suaíli falava mansamente, mas sem parar. Havia momentos de silêncio, respeitados pelos negociadores dos dois lados, e depois recomeçava o blá-blá-blá. Os homens armados olhavam desconfiados para nossas caixas forradas de material médico, lacradas com grandes cadeados.


De repente, novo silêncio. Nosso motorista se afastou do homem que parecia liderar o grupo e, sem dizer nada, entrou na Toyota e deu a partida muito lentamente. Isso aconteceria por várias vezes durante nossa viagem até a fronteira.


– Rebeldes – me disse Tchomba quando perguntei quem eram aqueles homens.


Os milicianos pertenciam a várias facções armadas em Ruanda, e as regiões que estávamos cruzando “pertenciam” a esses grupos. Apesar disso, não fomos molestados, e o motorista parecia muito seguro durante as paradas. Não existe luz elétrica, e a escuridão total da região era cingida apenas pelos faróis da caminhonete que, a essa altura, serpenteava a estrada cheia de crateras. Crianças, muitas crianças cruzavam o caminho. Os vilarejos de beira de estrada se multiplicavam, e neles as pessoas se aglomeravam para ver a Toyota.


Ao chegar à fronteira do Congo, no final da noite, uma surpresa: a passagem estava bloqueada. Conseguiríamos cruzá-la no outro dia, só depois de muita conversa em inglês, suaíli, francês, italiano e, obviamente, português com os soldados da minguada aduana ruandense. Assim, chegamos a Bukavu, mais animados do que cansados diante da expectativa do trabalho.


Ao chegar ao Hospital Universitário de Bukavu, encontramos famílias acampadas há dias diante do prédio com a esperança de conseguir tratamento para os filhos, a maioria portadores de fissuras labiopalatinas. Não eram os únicos a nos esperar. Perfilados na entrada do pequeno e velho hospital, estavam funcionários, médicos, autoridades locais e até o reitor da universidade. Numa antessala, ouvimos quase todo o grupo se suceder em discursos.


– Onde será a sala de cirurgia? – perguntei a Pablo.


Nesse momento, nos levaram a conhecer o hospital. Todos queriam mostrar salas, mesas e velhos leitos amontoados junto à parede. Diante de uma sala, que parecia ser a do bloco cirúrgico, um cabrito nos olhava com displicente curiosidade. A sala era enorme para os padrões brasileiros, mas não havia luz, água e equipamentos como oxigênio e aparelhagem de anestesia. O choque foi grande, mas não poderíamos retroceder. Médicos e outros habitantes queriam saber o que tínhamos achado do hospital e quando começaríamos a operar. Reunimos o grupo e resolvemos tentar conseguir o que faltava, inclusive em países vizinhos. Nosso grupo mostrou espantosa coesão e solidariedade. Em dois dias, para alívio de todos, começamos a operar as crianças com um aparelho rudimentar de anestesia.


As dificuldades mudavam de nome a cada dia. Estávamos a serviço de uma organização chamada Trem do Sorriso numa terra de crianças de olhos tristes, jeito meigo e poucas palavras. Sorriso, só veríamos em crianças muito pequenas que, provavelmente, não tinham noção do mundo a sua volta, deformado por guerra, genocídio, fome, privações, violências e atrocidades sexuais que transformava meninos em soldados. E, quando começava a pensar que nosso esforço em tratar aquelas crianças era tragicamente inútil, conheci numa manhã de sábado o doutor Denis Mukwege, por intermédio da funcionária das Nações Unidas Berta Grunaum.


Mukwege nos recebeu na varanda de sua casa com um largo sorriso. Mostrou interesse imediato pela missão, mas também falou sobre as dificuldades cirúrgicas encontradas por suas pacientes no Hospital de Panzi – a maioria mulheres vítimas de abuso sexual – e como tentava entusiasticamente resolvê-los. O cenário descrito por Mukwege era arrasador, mas em nenhum momento ouvimos aquele homem se lamentar. Ao sair de sua casa, levamos a certeza de ter conhecido alguém simples e amável, mas que representava também a máxima potencialidade da união de duas palavras: “ser” e “humano”.


Nos dois anos que já me separam da viagem à África, aprendi muito sobre esse congolês de 55 anos, que se tornou conhecido internacionalmente a partir de 2008. É um visionário, humanitário e corajoso médico que está na linha de frente de uma brutal guerra no coração da África. Uma guerra que, nos últimos 10 anos, deixou cerca de 6 milhões de mortos e centenas de milhares de mulheres violadas e torturadas. A comunidade internacional, no meio de uma das piores atrocidades e violências a que esse século assistiu, demonstrava até pouco tempo uma inexplicável indiferença. Mukwege usou sua vida para proteger as mulheres, maiores vítimas de toda e qualquer guerra, além das crianças. Poderia ter saído do Congo quando o conflito se iniciou, há mais de 10 anos, como muitos de seus compatriotas. Preferiu ficar.


Depois de concluir a formação em ginecologia e obstetrícia na França, Mukwege começou, em 1989, a exercer seu ofício no Hospital de Lemera. Esse foi o primeiro hospital a ser atacado pelos rebeldes na guerra. Foi totalmente destruído, e vários de seus médicos e pacientes foram brutalmente assassinados. Como outros refugiados, Mukwege tentou reconstruir sua vida em Bukavu, onde fundou e dirige o Hospital de Panzi. Nesse local, realiza cirurgias reparadoras em mulheres vítimas de violência e tortura sexuais causadas por infindáveis conflitos armados.


Além de acumular vasta experiência no tratamento desse tipo de paciente, Mukwege criou uma comunidade para as mulheres e meninas que se curaram em Panzi, pois passam a não ter mais família ou perspectivas de reintegração social depois de serem violentadas. A família dessas vítimas, que só possuem a esperança de recuperar a dignidade, é ele. Apesar da guerra, das atrocidades, das mais variadas violações dos direitos humanos no seu país, Mukwege tem o amor como única arma para manter intacta a fé na humanidade, enquanto continua a fazer seu trabalho de maneira incondicional e implacável. Tem demonstrado o valor social da medicina, a ponto de não conseguirmos separar, no seu exemplo, o médico do ser humano. Se, por desgraça, essa união se romper, a medicina deixará de ser medicina.


Em 2008, Mukwege ganhou os prêmios das Nações Unidas de Direitos Humanos, Olof Palme da Suécia e Africano do Ano. No ano seguinte, foi indicado para o Nobel da Paz, depois conferido ao presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. Juntamente com V-Day, Unicef e Fundação Panzi, está construindo a Cidade da Alegria, uma comunidade de pacientes vítimas da violência sexual no Congo.


Quantos Mukweges trabalham neste momento no mundo, no Brasil e também em Porto Alegre, incansavelmente, dia após dia, dignificando todos nós como pessoas, lutando quixotescamente contra o que é desprovido de valores humanos?


O educador brasileiro Paulo Freire não conheceu Mukwege, mas imagino como seria esse hipotético encontro. Freire certamente diria que estava diante de um grande e irrecuperável utópico, uma vez que Mukwege, ao acreditar veementemente que o mundo pode ser melhor, transforma não só a vida de seus pacientes, mas a de todos que o conhecem. E, dessa maneira, também passei a acreditar nas minhas próprias utopias, entre elas a de que ele pudesse ser conhecido no Brasil. O ciclo Fronteiras do Pensamento provou que as utopias, dando razão a Paulo Freire, são absolutamente reais, tão reais quanto as esperanças de uma criança que sonha em recuperar o sorriso nos confins da África.

No Coração da África Slideshow: Milton’s trip from Caracaraí, Roraima, Brasil to 2 cities Porto Alegre and Bukavu was created by TripAdvisor. See another Brasil slideshow. Create your own stunning free slideshow from your travel photos.

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